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INTRO
Entre
janeiro e fevereiro de 2012, Fernanda Eugénio e a investigadora associada do
AND_Lab Liliana Coutinho estabeleceram uma rotina-proposição: teriam uma
conversa por dia, a cada dia partindo de uma das palavras-tensão que começavam
a com-por o vocabulário do Modo Operativo AND.
Nesta
página, editada por Liliana Coutinho, estabelecemos agora uma nova
rotina-proposição: publicar, a cada semana, uma pequena síntese baseada nas
conversas realizadas, desdobrando as palavras-tensão em verbetes.
Em paralelo,
este glossário-piloto a ser trabalhado, no plano do grupo permanente de
investigação stANDing_by, formado por João Fiadeiro, Fernanda Eugénio, Carolina
Campos e Daniel Pizamiglio, para tornar-se num conjunto de
conceitos-ferramentas para o manuseamento concreto do Modo Operativo AND. Novas
palavras emergiram, e também o modo de abordá-las se complexificou numa relação
de triângulação: cada palavra é activada pela sua relação com outras duas.
Between January and February 2012, Fernanda Eugénio and AND_Lab research
associate Liliana Coutinho established a routine-proposal: they would have a
conversation a day, every day starting from one of the tension-words that were
starting to form the set of AND Game’s toolconcepts.
On this page, edited by Liliana Coutinho, we now establish a new
routineproposal: every week we publish a short summary of each conversation,
unfolding those tension-words in the “entries” of a Pilot-Glossary.
RECIPROCIDADE
Gregory
Bateson propôs três sismogénes, ou três modos de pensar a relação: a
complementaridade, a simetria e a reciprocidade. Tratam-se de três modos de
encontro. Os dois primeiros apresentam-se com papéis pré-definidos e claros que
não só se opõe mas que se complementam de modo simbiótico: um reforça o outro
e, aprisionando-o cada vez mais no seu lugar, reificam a relação de hierárquia
que estabelecem. Tratam-se de pares de opostos que obrigam a presença de
um a outro, numa partilha desigual de poderes de acção. A complementaridade e a
simetria são formas de encontro que reproduzem no tempo as suas condições de
produção e promovem modos de relação padronizados
A
complementaridade tende à hiérarquia, promovendo uma partilha desigual que,
tornada estática, dá origem a uma forma sem força que obriga toda a força que
emerge da relação a se confinar aos limites da sua configuração. A
complementaridade institui assim uma anti-relação, um “para sempre” formal que
congela qualquer possibilidade de relação participada. A exaustão da
relação por complementaridade pode conduzir à entrada em sismogénese simétrica.
Um dos elementos da relação revolta-se e pede igualdade, o mesmo tipo de
agência, os mesmos direitos usufruídos pelo então elemento “superior”. A
simetria é assim inaugurada através de uma igualdade à qual se chega de forma
antirelacional, por decreto e por mimetismo. Trata-se de uma igualdade que
permite o aparecimento de condições para desenvolver o conflito entre as
diferentes posições. Na relação complementar um grita e o outro cala-se; na
simetria, os dois gritam, criando ilhas de identidade que negam e isolam as
vizinhas. Nos dois casos há papéis definidos como formas prévias às
circunstâncias da relação.
A recíprocidade
apresenta-se como um terceiro modo de relação, uma partilha desigual de
habilidades e fazeres que torna possível que qualquer um tome uma posição. A
sua forma não está para sempre em aberto já que, ao emergir da relação, ela
inclui e exclui possíveis. No entanto, ao contrário das outras, ela é
determinada a cada vez que acontece, por um processo de negociação que começa
pela criação de condições de escuta ao que cada um traz para o plano de
relação. Os termos nos quais ela acontece emergem posteriormente à relação
concreta, i.e.: a cartilha para conduta não existe préviamente, ela emerge do
comum. Não existem por isso papéis definidos como formas pré-existentes à
relação. As formas emergem enquanto tal a partir do agenciamento de forças.
A relação de
complementaridade não hierárquica é uma das hipóteses da reciprocidade,
sendo que nenhuma forma totaliza ou resume a experiência do acontecimento
e do plano de relação. Na reciprocidade a liderança é entendida
enquanto centro irradiador de forças. Trata-se de uma liderança que não deixa
os que participam no acontecimento na posição de se rebelar ou de
obedecer. A direção de uma liderança convive então com o sentido de
outras direções. A reciprocidade torna visível a multiplicidade de
pertenças e de relações que, vividas em simultâneo, urdem o tecido do acontecimento.
Participa-se simultâneamente de vários relevos sem que tal implique uma
fragmentação da existência, mas porque é tudo isso que gera aquela posição
concreta e circunstâncial.
SECALHARIDADE
Este é um
conceito chave, uma porta de entrada no modo operativo AND. Trata-se de um
conceito que emergiu de um trabalho com a elasticidade da língua e de um
encontro particular entre dois contextos de enunciação: o português e o
brasileiro. “Se calhar”, uma expressão pouco usada no Brasil mas muito usada em
Portugal, exprime geralmente a ideia de um “logo se vê”, de uma certa
desimplicação na forma que tomará o desenrolar de um evento. Num entanto, num
olhar estrangeiro e que ainda só vê o que está em potência, essa mesma
expressão de desimplicação traz também o despontar de um outro modo de
funcionar, dependendo de como organizamos o sentido das palavras em relação ao
desenrolar da experiência. Trata-se do modo de funcionar que sabe que é com a
marcha do acontecimento que a sua forma vai surgindo. Nada está pronto,
formado, antes do fim: “vai-se andando conforme se marcha; vai-se andando e
logo se vê, e só no fim: pronto!” Deste modo, apelando ao encontro com um outro
imaginário línguistico, não se sublinha a desimplicação habitual mas sim a
potência de implicação que a expressão “se calhar” pode também evocar.
Secalharidade é um apelido, um nome que não
é nome, porque faz parte do funcionamento do terceiro modo não ter nome por não
poder ser absolutamente determinado. Com este conceito damos uma primeira
nomeação a um modo de fazer mundo que não tinha ainda nome e que difere
tanto do paradigma moderno – o reino do “é” -, quanto do paradigma pós-moderno
– o reino do “ou”. Alguns chamam-no de contemporâneo mas esta terminologia tem
contornos enganadores, pois ela pode dar a entender que se trata de um modo de
fazer mundo que só começou a existir agora. No entanto, não há uma relação
sequencial mas três modos de operar. Por modernidade, pós-modernidade e secalharidade,
referimo-nos a três modos que estão constantemente prontos a entrar em
funcionamento e cuja activação em maior ou menor grau dão o tom às épocas
históricas. Tratam-se de imagens de mundo implicadas em formas de fazer mundo.
A preponderância de um ou de outro modo de fazer mundo varia conforme o tempo
real, o tempo histórico, decorre. O próprio o sufixo - dade
atribui a estas palavras uma propriedade adverbial que as transforma em formas
de expressar estados. Existindo em relação de reciprocidade, em todos
tempos estão todos os outros, mas alguns são por vezes postos em relevo. Neste
sentido, partilhar um tempo é partilhar um modo de operar e não um mesmo tempo
histórico, cativo da linearidade.
O termo Secalharidade
permite então denominar esse terceiro tempo que não surge nem por superação nem
por abolição dos outros. No entanto, se pensarmos em termos arqueológicos, a
sequência modernidade / pós-modernidade / secalharidade faz sentido. A
fundação mitológica da modernidade é a grande divisão com o tempo que veio
antes, o tempo das trevas. Esta divisão instaura de imediato um pós-moderno:
aquilo que surge depois dela, como consequência. O mito da fundação valoriza a
própria origem na medida em que desenha um campo que define uma anterioridade,
em relação ao qual se dá uma grande ruptura, uma cisão quase instantânea e, a
prol da razão, um romper definitivo com a crença, a magia, os actos de fé, a
selvajaria indomada e todo um outro tipo de faltas (de remédios, de ciência, de
respeito, etc). A modernidade funda-se estabelecendo uma pré-modernidade e
estabelece-se através da razão, criando assim o Homem abstracto e não
contingente. Gerando uma anterioridade, uma origem, gera também a hipótese de
um depois, o pós-moderno, que começa de imediato a operar. O primeiro selo do
pós-moderno é o romantismo, o qual surge como contradiscurso ao que se
apresenta como discurso oficial
Na
modernidade, o tempo é unilinear, progressivo. É nele que se determinam os
sujeitos, os objetos do mundo, a realidade dada de antemão à experiência, a
razão que produz como consequência primeira os que tem razão e os que não a têm
e a distinção entre natureza e cultura. Estas determinações começam logo a
gerar crítica e contra-discursos. Surge então o modo operativo da
pós-modernidade como eco do moderno. Se o moderno estabelece a ordem do “é” (um
único tipo de homem, de tempo, de espaço), desenhando uma macroesfera como
limite-contorno geral de tudo o que existe, o pós-moderno pluraliza o ser e
desmultiplica-se em multiplas identidades e temporalidades.
O problema,
ou a perversidade da pós-modernidade é o modo como ela se faz acompanhar de
ações de desistência, de indiferença total, de nihilismo e de recusa, ou de
resistência. Tal pode manisfestar-se num recolhimento ao plano do ego e numa
desistência em agir na coisa publica (res-publica). A resistência, por sua
vez, sendo uma relação de complementaridade, precisa de conservar o seu
oponente e a relação que tem com ele de afastamento e recusa. Isto mostra que,
muitas vezes, a resistência é já uma desistência perante o estado das coisas. O
estado do mundo, contra o qual a resistência parece operar, é conservado. A
resistência não é uma passagem, não é um empenho num reparar. É um
manter-se num problema para sempre, em loop, que pode dar lugar à desistência,
à resignação ou à simples transferência de lugares de poder. Da contra-cultura
passa-se para a cultura, e isto acontece porque a forma se sobrepõem à força e
começa a reproduzir-se, tal como o modelo contra o qual se resistia.
No entanto,
a pós-modernidade introduz uma diferença que é a mobilidade dos
conteúdos: uma diferença fundamental mas não suficiente para questionar os
pressupostos da cisão criada pela modernidade e que tende, como consequência,
para o antirelacional pois o outro é percebido através de uma relação
endurecida. De relações necessárias entre formas e forças, continuam-se a criar
relações de identidade que se tornam compulsórias, em coexistência com a
mobilidade das forças que podem entrar em qualquer forma. O que pode ser uma
golfada de liberdade não o chega a ser pois é conservado um modo de
relacionamento entitário. A pluralização de formas pode assim redundar numa
indiferença, num “tanto faz”.
Um terceiro
modo de fazer mundo poderia ser chamado de pré-modernidade. Se tomarmos a
modernidade como evento, ela esta ali como condição de enuncição do pré-moderno
e do pós-moderno. A secalharidade pode ser entendida no sentido do pré
-moderno: um mundo sem cisão, no qual está presente o que a modernidade
declarou impuro, como a relação contingente com um todo onde o “tanto
faz” não tem lugar. Se a modernidade cria um sentido por detrás das coisas, uma
cisão entre o antes e o depois, promovendo mecanismos de resistência, a secalharidade,
como terceira via de operar, permite a re-existência. A cada ciclo de
relação corresponde um re-start, um reorganizar da resistência, uma regulação
constante da relação, reformulada a cada vez que acontece. Esta existência que
aceita a instabilidade do plano comum, permite que se partilhe um mesmo terreno
de relação sem que este terreno unifique ou institue préviamente comportamentos
e modos de vida. O que ele permite é que diferentes modos de vida possam ter
lugar e operar no seio do universo das relações sociais.
Esta
terceira via, ou modo de fazer mundo, acontece num plano cujas condições
iniciais não são prédeterminadas. Estas surgem à medida que o plano vai
imergindo da própria prática relacional. A secalharidade activa uma
lógica consequente, ou seja, uma lógica na qual as ações e posições têm
consequência na geração do plano comum. A paisagem deste último
desenha-se pelo que calha, a cada vez, acontecer. O que calha acontecer diz,
por sua vez, o que pode ou não pode vir a acontecer. Trata-se de um modo de
operar que nos permite activar o comportamento de observação. Concentramo-nos
em observar o que pode acontecer, indo ao encontro das condições que se
encontram presentes no plano e não ao encontro do que, supostamente, se sabe,
se pensa que deveria ser, ou se acredita de antemão. É neste encontro que se
abrem, ou não, possibilidades de experiência.
POSICAO
No modo
operativo AND previligia-se o tomar uma posição em detrimento
do agir. A tomada de posição contrasta com a ideia de ação
quando por esta entendemos as consequências do protagonismo de um sujeito.
Porque a emergência de um evento é propositiva da matéria que
faz o acontecimento, não existe um sujeito protagonista. O sujeito
limita-se a tomar uma posição que lhe vai permitir manusear
essa matéria com a qual se faz o acontecimento. Nesta tomada
de posição o pensar e o fazer coexistem. Os dois processos
coincidem no tempo e no espaço, ganhando uma densidade concreta que tem
consequências no plano comum e no desenho da paisagem
partilhada. Oferecer uma posição é criar a possibilidade de
existência do outro e não de si mesmo, abrindo por isso espaço à emergência de
um plano comum. Por sua vez, uma ação com protagonismo é uma
criação de um ego separado do acontecimento.
A ação é
fruto da cisão quando é pensada como oposta à reflexão. Ela resulta assim num
fechamento das ligações entre mente e corpo e funda-se num saber reflexivo que
se apresenta como argumento de autoridade que se impõe à relação.
Uma outra forma de ação subverte esta hierarquia mas conserva a cisão:
recusando a hegemonia da reflexão, dá-se uma recuperação da “espontaneidade” da
ação que, sendo aberta porque não é precedida pela reflexão, é incompleta pois
participa num regime de “vale-tudo”. Deste modo, não tendo em consideração as
consequências para o seu entorno e as circunstâncias nas quais se desenvolvem
o acontecimento, as ações tornam-se gestos inconsequentes que não
se inscrevem no plano comum (kronos). Tomar uma posiçao é
corroer o plano da cisão para que o pensar e o fazer passem a ser um único
procedimento.
Quando
uma posição é ofertada não se pergunta porque é que isso
aconteceu mas o que isso traz. Faz-se uma estimativa do encontro,
interrogando-se as quantidades do que se propõe a uma entrada
em relação, ao mesmo tempo que se interrogam as quantidades que
nós – o(s) agente(s) que vão responder à posição – podemos
trazer para o plano de relação ao respondermos à posição. Este
processo de projeção de hipóteses de relação só é possível implicando o corpo;
começamos aí a entrar num plano de implicação e de ensaio
holográfico sobre como materializar o encaixe e dar corpo a
uma affordance possível Entramos então em standby.
Em standby o
pensar e o fazer também coexistem mas ainda numa zona de sombra, com menos
corpo, menos densidade e menos visibilidade partilhada. É nesta posição que se
efetua o trabalho de impessoalização para que a posição não
venha a ser ocupada pelo ego. Neste trabalho de menorização testam-se de forma
hologramática e virtual todas as affordances e posições
possíveis para que a posição a tomar seja precisa (no sentido
de ter precisão e de responder a algo do qual o plano comum está a precisar),
clara e suficiente. Entrar em posição é parar o fluxo que
ocorre em standby, onde nos aprontamos para oferecer uma posição.
O que é ofertado ao plano como posição é alvo
de um trabalho, de uma negociação que desmultiplicou uma imensa
quantidade de “eus” e que com eles compôs de forma a oferecer-se como uma
proposta clara ao plano. A posição é então
entendida como uma oferta que aciona o ciclo de dádiva através do qual se tece
o plano de relação. Este ciclo é constituído pelo receber,
retribuir, aceitar e reparar. É ele que permite a entrada em composição e
só é inaugurado quando a oferta não trás um sentido determinado por si mesma
mas se oferece-se à emergência de um sentido partilhado. Uma posição é
um convite, mesmo se já implicado e dependente do que está já presente no plano de
relação. Da perspectiva do plano de composição ela
é uma resposta para uma pergunta que está em processo de emergência. No
entanto, é só retrospectivamente que ela aparece como resposta. A posição só
recebe a sua completude à medida que vai fazendo parte de uma composição e
por isso podemos dizer que a posição se determina e se enuncia por retroação.
A autonomia
da posição corresponde ao seu tempo de sobrevivência que nunca
pode ser pré-determinado. Se a posição for suficientemente
completa para durar e suficientemente aberta para entrar em relação, a sua
autonomia pode ser grande. Suficientemente aberta porque a autonomia da posição depende
da sua capacidade de entrada em relação com outros fatores em jogo no plano de
relação. Existe então uma diferença entre autonomia e independência: só existe
com-posiçao, nunca existe uma posição isolada. O tempo de duração da
autonomia é proporcional à affordance que ela consegue ativar.
Ele é medido de forma perspetivista pelas propriedades-possibilidades presentes
e pelas de quem vier a responder à posição.
Quando se
entra em posição oferece-se uma proposta de relacionamento.
Quando a resposta é recusada, essa mesma recusa transforma-se em resposta.
Perante a recusa é necessário então reparar novamente para se
fazer com o que se tem. Esta reparagem é uma declaração de dependência. Uma
oferta, para o ser, está sempre na dependência de ser aceite e usada. O não-uso
é tomado como uso que foi feito, como uma nova quantidade de diferenças que
entram no plano de composição. Nesta altura,
após reparar, ou a posição se desdobra em composição ou
morre (i.e.: cessa o tempo de autonomia da posição). Do ponto de vista de quem
propõe, a tomada de posição é uma pergunta que não impõe ao outro a
obrigatoriedade de uma resposta determinada. Não é possível chegar ao plano
comum com certezas – estas não convidam à entrada em relação.
GAMEPLAYER
A distinção
entre gamekeeper e gameplayer é
funcional. O gameplayer está dentro do jogo, ou seja,
disponibiliza-se como matéria para o acontecimento. No entanto, nunca se entra
definitivamente no jogo pois a atitude do gamekeeper é
accionada logo que se entra em estado de gameplayer. A distinção
entre estes dois estados reside no recorte de paisagem que uma
ou outra posição tem de gerir. Enquanto gamekeeper, gere-se o
recorte inteiro da paisagem. Quando se entra como gameplayer não
se pode perceber a paisagem como um todo. Tomando-se uma posição o
recorte da paisagem passa a responder à perspectiva singular
dessa mesma posição. A entrada em posição de gameplayer é
preparada na posição de gamekeeper, na qual nos damos conta do que
o acontecimento precisa e a que é que podemos atender. A
tomada de posição que aparece nestas circunstâncias tem um
tempo de autonomia que é limitado. A autonomia da posição do gameplayer é
activa e rigorosamente distinta da posição do gamekeeper somente
no acto da tomada de posição e enquanto ela durar.
Se tornar-se
um gameplayer é oferecer-se como matéria para o acontecimento,
a noção de autor é afastada. O “eu”, contingente, será o resultado e não a
causa e a razão da entrada em relação. Entrar em jogo é decidir
responsabilizar-se fractalmente pelo plano comum.
Enquanto gameplayer o agente não realiza simplesmente uma
acção. Ele toma uma posição. Tudo o que fizer a partir de então
terá de ser extraído da materialidade concreta da sua posição, da
sua envolvente ou da oportunidade de um acidente e não da sua
vontade ou da sua interpretação. Por isso, o acto de disponibilizar-se
como matéria implica a realização de um trabalho de menorização do “eu”.
Normalmente carregamos sempre connosco o nosso “eu” e isso dificulta o processo
de nos tornarmos matéria para oacontecimento, oferecendo-nos
enquanto objecto para o seu desenrolar. É então necessário que
exista um trabalho de menorização do “eu”, tal como está explicito na
definição de posição, o que nos leva a tratar o sujeito como diferença introduzida
no acontecimento e a desprender a experiência do corpo da
experiência do “eu”.
O acto de
tomada de posição é um acto de geração de uma zona de autonomia temporária.
Como oacontecimento é reescrito quando acaba o tempo de autonomia
da posição, a emergência do “eu” dá-se muitas vezes na passagem
entre posição e standby, ou seja, no momento de
perca de autonomia da posição de gamekeeper. Esta
passagem pode levar à emergência de um “eu”, ou então a que se revele a
gradação existente entre gameplayer e gamekeeper,
passando-se então de um a outro. Ou seja, o momento em que a relação
poderia vir a ser possível entrando em standby e passando para
a posição de gamekeeper, a posição corre o risco
de degenerar, transformando-se em “actor”, em “eu”. A distinção entre gamekeeper e gameplayer é
então uma distinção de níveis de gradação nos quais o primeiro se oferece como
material para o acontecimento.
A existência
de um gamekeeper implica já a existência de um trabalho de
menorização do “eu”. Sendo a sua acção a de manter a suficiência do plano e,
desta forma, gerir, retirando ou colocando, asquantidades presentes
no acontecimento, o gamekeeper coloca-se nas bordas do
acontecimento. Já ogameplayer acontece dentro da direcção do acontecimento e
não nas suas bordas. Ele é como a gradação máxima do gamekeeper o
qual, verificando a necessidade de oferecer uma posição que
abra uma força no plano de relação de forma a manter a
sua suficiência, oferece-se a si próprio como matéria.
No gameplayer acentua-se então a necessidade de cuidar
da própria posição para que esta não degenere numa espécie de
hiper-protagonismo. Este é um trabalho que leva à despersonalização sem
indiferença e sem perca de singularidade, e também ao viver como diferença aberta
aos múltiplos mapeamentos aos quais se pode vir a pertencer.
É importante
sublinhar a dimensão de play, na noção de gameplayer. A
acção do gameplayer é uma brincadeira séria. O gameplayer não
se pode levar demasiado a sério senão tudo se torna pessoal. O que é
sério é a brincadeira, o jogo, o plano de relação. De resto,
não há culpas, não há pessoas a aproveitarem-se da situação, não há relações de
dever-haver. Não é o “eu” que é sério. A implicação e o compromisso do gameplayer são
idênticos à doação de si à qual as crianças se disponibilizam nas
brincadeiras nas quais se empenham colectivamente para construir um mundo. É
esta doação de si que conduz a uma modulação do corpo e a uma lógica reguladora
emergente da dinâmica do jogo e da brincadeira. As regras
geram-se na altura e incluem-se ou não na brincadeira, definindo-se assim
em tempo real os espaços de possibilidade daquela relação
específica. O território, ou a paisagemcomum, que emerge com o
jogar da brincadeira é feito dessa regulação emergente, do que pode ou não
pode, do que é excluído ou incluído, criando-se um fio lógico sem precedentes.
A emergência do “eu” – uma birra, por exemplo – pode interromper o acontecimento e,
eventualmente, ocasionar o seu fim súbito, tendo como consequência o
desmantelamento do plano de relação.
AFFORDANCE
O conceito
de affordance foi inicialmente formulado pelo psicólogo James
J. Gibson para dar conta do entendimento da percepção visual, não a partir de
uma cisão entre quem vê e o que é visto, mas como a expressão de uma entrada em
relação essas duas supostas entidades (sujeito que vê e objecto visto). O
conceito de affordance foi posteriormente estendido a outras
dimensões perceptivas. A vantagem deste conceito é a de deixar bem visível o
trabalho de des-cisão, pelo qual se percebe o alastramento do poder
de acção a todos os elementos presentes na relação. Desta forma, o
outro, o objecto percebido, apresenta-se não como coisa determinada, mas como
um convite a uma entrada em relação.
A noção
de affordance interrompe a distinção entre objectivo e
subjectivo. Numa relação perspectivista pautada pela noção de objectividade, pretender-se-ia
descrever aquilo que seria propriedade intrínseca ao objecto observado. Numa
posição subjectiva, a descrição recairia sobre as possibilidades de fazer
coisas com esse mesmo objecto. Ao perceber as affordances o
que se descreve e percebe são as propriedades-possibilidades que o objecto
oferece ou, para dizê-lo de uma forma mais precisa, que aquela relação
contingente com o objecto nos oferece. As propriedades em causa emergem assim
desta relação, não sendo por isso intrínsecas ao objecto. O mesmo acontece com
as possibilidades. Estas não estão presentes “em si”, nem do lado de um suposto
sujeito, nem do lado de um suposto objecto. A explicitação das affordances dá-se
então através de um processo dedes-cisão. É este que permite percebe-las
enquanto potências de relação. Fora da des-cisão não são
potências de relação que se percebem mas entes. Assim, a leitura que
institui um sujeito e um objecto é somente um dos engates possíveis
entre agentes de um acontecimento.
Quando um
modo de investimento particular no acontecimento é formalizado e apresentado
como uma verdade, transforma um modo de relação possível num padrão repetitivo
e sem força. Por exemplo, a formalização da relação em relação sujeito/objecto
é a concretização de uma affordanceque um dia foi tomada como tal e
tornada qualidade. No entanto, a activação rápida da distinção entre sujeito e
objecto faz com que desapareça a consciência da relação que institui estes dois
entes enquanto tal. Esta distinção é um modelo que se acciona perante o
desconforto que pode provocar a consciência da relação. Não se querendo
sustentar por muito tempo a incerteza implícita em qualquer dinâmica
relacional, activam-se papéis marcados e representações, i.e.: entra-se num
modelo prévio à relação mas que vai definir o seu desenrolar presente e futuro.
No entanto, no momento em que esse modelo emerge para acalmar a ansiedade
provocada pela incerteza, seria importante dar um passo atrás e conservar a
relação, não activando qualquer modelo prévio e optando por explicitar as affordance presentes.
A declaração
“isto-é-isto” obscurece qualquer relação. Dizer “é” é dizer o que pode e o que
não pode, o que coloca o pensamento ontológico e o exercício do poder num mesmo
plano de co-incidência. Da mesma forma, qualquer afirmação que se
arrogue objectiva ou subjectiva, é tomada como um exercício de poder. Desta
forma, a subjectividade exclui a partilha e fecha cada ponto de vista
subjectivo numa ilha. Na objectividade, a partilha dá-se através de um saber,
pelo qual um sabe e o outro fica sabendo, criando-se assim as condições de
reprodução desse mesmo esquema de relações hierárquicas. Retroceder em relação
ao que “é” é perguntar de novo o que pode, qual a potência, o que possibilita
tal encontro. Perguntar o que pode cada agente presente à relação é retroceder
dasqualidades para as quantidades. Trabalhar no plano
das affordances é desqualificar. Ou seja, é tornar possível
uma relação num tempo presente, naquele momento e não num outro, a partir de
uma entrada em relação e não a partir de uma intenção, distinção ou cisão
prévia.
É a relação
que vai dizendo aos poucos o que cada corpo é e o que cada corpo pode. Só na
entrada em relação é que se percebe o que se pode. As propriedades e
possibilidades de cada corpo, de cada agente, são contingentes à situação. Cada
vez que um encaixe se faz, um conjunto de possibilidades se abre e se
fecha. Não se trata aqui simplesmente de medir quantitativamente o
numero de relações possíveis. Trata-se de medir a gradação de intensidade que
pode estar presente numa só abertura, num convite à entrada em relação, assim
como de medir as temperaturas e as quantidades variadas pelas quais certas
relações proporcionam mais ou menos potência. Quando estamos diante
de um evento, a entrada em composição dá-se a
partir de um trabalho de clarificação dasaffordances. Fazer
este trabalho é olhar para o que a coisa carrega e para o que cada um dos
agentes trás como possibilidades. Percebendo-se as quantidades dá-se
início à relação que desenha o acontecimento. Perceber as affordances é
então assinalar as hipóteses de encontro e de encaixe; é perceber a
possibilidade de criação de ligações com o evento em questão,
passíveis de serem produtoras de acontecimento.
Uma das
contingências presentes na percepção das affordances é o tempo
real de autonomia para materializar a relação. O que é introduzido
como primeiro evento oferece uma quantidade deaffordances possíveis,
de potências cuja intensidade e activação vão possibilitar a duração do
acontecimento. Um primeiro evento é como um armazém de affordances possíveis.
Podendo prometer muito podemos não estar à altura dele, não perceber que o seu
tempo de autonomia terminou e não saber, ou não poder, cuidar dele. Desta forma
o acontecimento em potência não se realiza. Tal acontece porque por vezes não
se tem condições para activar a affordance que se percebe. A
sua activação não depende da vontade do sujeito mas das possibilidades
oferecidas pelo acontecimento. Neste contexto, a vontade pode ser percebida
somente como uma das possibilidades oferecidas, insuficiente para que que
a affordance se realize. A direcção do
acontecimento é feita de todos os elementos presentes na relação. Não existe
somente o “eu” e o evento; é preciso também contar com outros
agentes como o tempo, as condições da paisagem envolvente,
etc. É preciso ter tudo isto em conta quando chega o momento de
tomar uma posição clara, expressão da realização de umaaffordance percebida.
É necessário então que tenhamos consciência da diferença de grau entre a percepção
da affordance, a qual se situa ainda num plano de enunciação, e a
materialização daaffordance como acontecimento. É na
tradução de um grau ao outro que é preciso dedicar todo o nosso cuidado. Uma
realização sem cuidado pode fazer com que uma grande parte da intensidade
percebida na affordance se perca.
Um exemplo
claro do que pode ser um trabalho de explicitação das affordances reside
no trabalho da ergonomia. A ergonomia é o estudo dos acoplamentos entre o corpo
humano e os seus objectos. Enquanto tal ela torna possível e explora as
melhores possibilidades de encaixe entre um corpo e, por exemplo, aquilo que
virá a ser uma cadeira. A manipulação do desenho do objecto serve este encaixe
e é esse trabalho de precisão que gera o “é” da cadeira. Ela torna-se um ente
quando o encaixe define uma cadeira e nada mais do que uma cadeira. Ela
apresenta-se assim como um modelo que excluí outras possibilidades de
funcionamento daquele objecto e de relação com o corpo, determinando-se assim
enquanto cadeira. Quando o objecto aparece assim determinado como um “isto é
uma cadeira”, todo o trabalho de explicitação das affordances que
o fez emergir como cadeira desaparece e o objecto é simplesmente usado como
tal. É preciso então, se não quisermos lidar com a cadeira de um modo prosaico
activando um modo de relação habitual e pré-determinado, retroceder às brechas
da cisão. Com um grau de pertinência diferente daquele que emana do exemplo da
cadeira, mas ainda acerca da fixação de uma relação numa forma determinada, temos
o processo de reificação das condições de vida em comum. Quando as condições de
vida em comum se apresentam demasiado formalizadas e hierarquizadas é difícil
que emerja uma comunidade que não seja ditatorial. É então necessário abrir
brechas que permitam ver como essas formas exprimem relações; é preciso fazer
um trabalho no alargamento das affordances possíveis e na
visualização de outras affordancesque uma determinada relação pode
propiciar.
PLANO
A noção
de plano equipara-se ao conceito de “plateau”: uma altura
espacio-temporal que diz respeito a uma partilha de tempo e de espaço. O plano de
com-posiçao é um acontecimento com-partilhado, modelado em volumes, alturas e
intensidades, em modo de co-temporalidade. O conjunto espacio-temporal desenha a paisagem –
cuja é quase análoga à noção de plano mas a sua configuração
só se conhece no fim desse espaço-tempo partilhado. De facto, a paisagem ultrapassa
o plano. Este dá-nos o estado da paisagem a cada
momento presente. O conjunto de todos os planos que percorremos juntos dará
a paisagem. O plano é também acontecimento porque
está na linha do kronos – é também por isso que não é eterno – e porque está
efectuado. Aparece porque ganhou corpo.
Existem
outros tipos de planos, que surgem através de outros tipos de pacto –
simétricos, complementares – mas que não fazem comum. São o caso de planos
entendidos como modelos que antecipam e orientam a execução de qualquer acção
que venha a ter lugar. Estes declaram como é que o acontecimento deve
ser antes mesmo deste ter lugar. Trata-se do plano entendido como antecipação à
execução propriamente dita. Este tipo de plano, que nos é legado pela cisão
moderna, exclui as singularidades que não cabem nele. O colectivo é assim
confundido com uma igualização totalizadora, oposta a qualquer registo singular
e individual, pela qual só se faz comunidade a partir do que cada elemento tem
de igual a outro. Trata-se de um modelo de concordância gerado pela procura de
um denominador comum a partir do qual se gera um consenso que toma o lugar do
senso comum. O comum torna-se assim análogo ao uniforme. Frequentar o comum é
então frequentar o que se apresenta como igual. A escolha de discordar só é
possível separando-se deste plano, o que origina sempre um cancelamento da
relação e, por vezes, a fundação de um outro plano. No entanto, partilhar uma
mesma direcção não é a mesma coisa que concordar
Todo o
trabalho na CTR procura estabelecer um plano que emerge de
uma direcção partilhada e é por isso que ele se torna comum.
Só se entra em acontecimento, em composição, quando
emerge uma direcção partilhada. Assim, a emergência do plano não
equivale à emergência de uma concordância ou à obediência a uma autoridade que
o preceda. Não se trata de acatar ou de reproduzir um modelo – tal, a acontecer,
seria a morte do plano por efeito de loop. A simultaneidade
espacio-temporal do plano comum está implicado numa co-incidência das
diferenças e não no cultivo do igual. Trata-se de um todo distributivo, feito
da distribuição e da modulação singular diferençaspor cada agente
implicado no acontecimento. O plano é feito de
linhas singulares tecidas por cada agente presente ao acontecimento.
Assim, não se partilha uma propriedade comum mas uma tendência e uma direcção que
nos transporta por diferentes alturas espacio-temporais.
A totalidade
do plano comum encontra-se na membrana variável e permeável criada pela relação
entre as partes e não em algo – um modelo, uma ideologia, uma imagem unívoca –
que englobaria toda a experiência e fixaria uma concordância. Na CTR, o
quadrado é uma representação visual, uma imagem geométrica e aritmética desta
membrana que circunscreve um dentro e um fora circunstanciais. O dentro e
o fora dão a circunstância da direcção comum. Partilhar um plano é então
estabelecer uma relação de contemporaneidade e partilhar um mesmo território. O
seu interior equivale à partilha temporária de um conjunto de
referências presentes no acontecimento. Esta partilha está em
equilíbrio meta-estável pois algum equilíbrio é necessário senão não se chega a
constituir um plano. No entanto, esse equilíbrio não é inteiramente estável
pois não dita uma ordem ou uma regra que sedimenta o que é dito como comum ou
não.
É preciso
verificar a tempo inteiro se sempre estamos ou não no mesmo plano e
na mesma direcção. O plano aponta tendências
futuras e não é uma forma rígida. Não é uma substância que cristalize um mundo
comum e determine “a priori” a conduta a ter. Não se trata de uma forma
fechada, homogénea, mas uma forma de relação que se refaz constantemente. O seu
contorno não circunscreve um igual que frequentamos mas sim os possíveis
daquela relação e, por isso, o plano inclui algumas coisas e exclui outras.
Quando se conserva um comportamento outros deixam de ser possíveis, não podendo
por isso ser incluídos no plano comum. Os limites-contorno do plano são dados
pelos possíveis incluídos e excluídos. No entanto, a direcção possível não é
uma linha unívoca. Ela contém varias direcções comuns como micro relevos do plano.
Dentro do que é incluído como possível há elementos mais ou menos activados.
Nada está definitivamente excluído ou incluído.
Quando se
diz plano, diz-se uma relação cuja estabilidade depende da potência
que tem para se transformar. O plano é então uma relação que se preserva porque
vai mudando. Feito da dosagem variada e do fazer e refazer da distribuição
das diferenças que se preservam enquanto tal, o plano é um
ponto de encontro de forças que, ganhando corpo, fazem forma. É preciso chegar
à tendência comum que não é dada à partida, tal como o plano comum não é dado à
partida. Ele vai-se definindo por uma relação de reciprocidade. Para dar corpo
a esta tendência comum é necessário efectuar um trabalho de redução da
multiplicidade de planos em potência mas ainda sem corpo. É preciso criar um
lugar comum no qual convergirmos de forma não homogénea ou uniforme.
ACIDENTE
O Acidente é
um fenómeno de emergência disruptiva do caminho ou direcção em curso e
manifesta-se em dois tempos: o instantâneo do encontro de um mundo que se
simpatizou connosco e a noticia de um Fora. Emergindo como consequência do
Encontro com o Outro e tornando de súbito presente um Fora até então
insuspeito, é uma aparição que já se apresenta como Forma efectuada, cuja
consistência é alheia ao plano comum ou à linha perceptiva
singular de um gameplayer. A percepção do acidente é perspectivista
e assinala o encontro entre duas posições que, de súbito, passam a compartilhar
uma mesma temporalidade. O acidente, assim, é o fenómeno consequente a uma
co-incidência, de uma entrada em simultaneidade – ou em zona clara partilhada –
de duas ocorrências que até então se desenvolviam na zona escura uma em relação
à outra. Quando a acção e o tempo de duas ocorrências coincide, dá-se o
encontro que permite a coexistência de mundos. Sendo uma abertura para um Fora,
dando noticias de um comum que não é o meu comum, o acidente dá a ver um Outro.
No momento
em que se põem em contacto superfícies que não estavam em contacto antes,
torna-se presente a coexistência de vários planos na tecitura da existência. O
tempo em que o encontro se dá é finito. Ele é o instante da noticia
e logo deixa de ser noticia de um Fora pois o plano comum, no
exacto instante do seu reconhecimento, incorpora-o. É preciso
ressalvar que, mesmo havendo um encontro, a incorporação pode também não ser
feita. Tal acontece quando a noticia da existência de um Fora se torna um
evento que passa, que não ganha relevo. (Importante: A divisão
entre dentro e fora é circunstancial, não absoluta, criada para dar
consistência e estabilidade meta-estável, não enrijecida, ao sistema que
desenha o plano comum.)
A emergência
do acidente dá-se primeiro como uma densidade de força e não de forma, embora
hajam acidentes que se apresentam já como forma. É uma questão de gradação. A
força aparece no tempo do aeion, numa fagulha de aieon, o tempo da potência.
Quando se reconhece o acidente enquanto tal, ele é integrado no cronos, o
tempo histórico. Quando o acidente tem ainda muita força, existe um espaço de
negociação em relação à forma que ele vai tomar e ao modo como vai intervir na
configuração das relações em presença no plano comum. De forma análoga, quanto
menos rígido for o sistema que desenha o plano comum, mais tempo e mais espaço
de negociação ele vai dispor para a escolha de como acolher o acidente. É
o reconhecimento que completa o acidente e, por isso, só
se usarmos a força como acidente é que ele aparece como tal. Se o
acidente estiver muito formalizado não há espaço a muita negociação. Por vezes
podemos ignorar o acidente, outras vezes, ele impõe-se de tal forma que nos
obriga à sua aceitação.
Existe um
processo de contra-efectuação no aparecimento do acidente: nós só podemos dizer
o que ele é no momento em que este se efectua, atingindo o plano cronológico.
Antes disso, o acidente ainda é disforme. O acidente dá-se primeiro no plano do
Aeion, da potência e, quase instantaneamente, porque nos damos conta,
instala-se e efectua-se, tornando-se parte do tempo cronológico. O plano do
chronos é onde se dá o acontecimento, é o plano do comum a todos os agentes. O
plano do Aeion é perspectivista: é a partir da posição do agente, que percebe o
acidente enquanto tal, que alguns possíveis são possíveis e outros não. De uma
outra posição, se o acidente também aparece, é um outro tipo de acidente e
nunca o mesmo. O cubo formula-se segundo uma outra perspectiva. O acidente, na
contra-efectuação, acaba por ser completamente incorporado sob a condição de
ser transformado porque é usado. É encaminhado para dar seguimento ao que
estava acontecendo ou é usado para dar azo a uma transformação mais ou menos
radical do plano comum. A contra-efectuação só é possível se o agente se
colocar em standby.
O acidente
nunca traz uma determinação. Ele pode injectar uma nova vitalidade necessária
ao sistema ou, então, matá-lo. Ele traz somente o sinalizar de um mundo
possível, oferecendo novas possibilidades de configurar as relações que
constituem o plano comum. A sua dimensão varia numa gradação de escala e de
intensidade. Ele pode ser um choque ou um simples esbarro, ter uma dimensão e
intensidade suficiente para reverberar na paisagem comum ou
manifestar-se de forma infima, indo somente ao encontro de uma linha singular
presente no sistema. Um acidente que atinge somente uma linha singular
perceptiva, pode também, por reverberação, atingir o plano comum.
Podemos
sintetizar as formas de lidar com o Acidente em três etapas: aceitação, explicitação
e manuseio. São três acções que acontecem dentro da brecha do possível. A
ferida feita pela força vai fechar e é nessa brecha que se tem de estar à
altura da situação para colocar o manuseio em marcha. O primeiro momento da
emergência do acidente é o aceitar, o que não quer dizer ainda incorporar. Seja
a detecção do Acidente feita antecipadamente, seja ela feita após sua aparição
concreta, qualquer hipótese de entrada em relação com as quantidades de
diferença que o Acidente introduz na relação está dependente da
pronta aceitação deste. É da aceitação que depende a capacidade de nos
colocarmos, tão imediatamente quanto possível, em standby, a
fim de proceder à explicitação das novas affordances que
emergem deste encontro. Quando se aceita abre-se a possibilidade de fazer-com.
Se o
acidente traz uma escala muito elevada de força, não é justo não coincidir com
ele. A ética não deve ser o que eu quero, não se está no acontecimento sob
condição de sujeito. Tudo aconteceu porque houve uma des-cisão da
separação sujeito-objecto. Os agentes humanos que podem dar forma ao espaço
comum estão na condiçao de gameplayers e não de autores ou de
criadores. Há uma co-geração do acontecimento pelos vários
agentes-elementos do sistema. Se o gameplayer foi atingido
pelo acidente, é porque ele se tornou objecto. Ele não se deveria preocupar com
o que fazer com isso pois é ele que está sendo feito. Num
primeiro momento, o objeto sou eu (quem percebe o surgir do acidente) e não o
contrario. Só a partir dai é que é possivel fazer-com, fazer-com o que está
ali. O acidente é uma oferta, uma dádiva, um outro que chega. Vai pedir para
ser retribuida, mas para isso é necessário que eu reconheça que fui agido.
É preciso
agir com o que é ofertado e à altura do que é ofertado. Para isso é preciso
explicitar o que o acidente traz e trabalhar com os seus limites-tendência. Enquanto
o acidente está no tempo aeion, ele é que é o agente. No instante que se
reconhece enquanto ser-acidente, inscrevendo-o assim no tempo cronológico,
passa a ser possível fazer algo com o acidente e surge a oportunidade de agir
sobre ele do mesmo modo que fomos agidos por ele. Na explicitação são medidas
as forças do sistema, da paisagem que está em curso, as forças trazidas por
esse outro, a quantidade de possíveis que esse outro matou e a quantidade de
possíveis que esse outro abriu, para escolher em qual deles se vai investir,
qual deles se vai manusear. A explicitação decorre quando re-paramos nas
quantidadades de diferença introduzidas pelo acidente e as
colocamos em relação com as quantidades que já estavam presentes no sistema no
qual nos situávamos. É re-parando essa/nessa relação que se
decide se o acidente deve ou não ser acolhido. O acidente é uma brecha, uma
oportunidade, para a des-cisão.
Existe uma
gradação da incorporação do acidente que exprime o como lidar com o acidente e
que o inscreve enquanto tal. É o uso que se faz dele, da sua força, que o
institui como acidente, como forma de encontro. Nós estamos sempre a receber
noticias de outros Foras, de outros modos de vida, de outras acções. A
quantidade virtual de hipóteses de encontro é inumerável. Decidir então que
acidente acolhemos como acidente ou não torna-se uma questão ética.
Contráriamente à perspectiva pós-moderna, não se acolhe tudo. Cada acidente
surge como uma pergunta, coloca uma questão. O acidente é assim uma
oportunidade de decisão – de des-cisão. A ética que rege essa des-cisão é
a ética do suficiente, uma ética situada, numa regulação constante e dependente
das circunstâncias. A decisão da incorporação do acidente depende do acontecimento e
não de um Eu. O sistema precisa deste acidente? E se ele não
precisa, qual é a força que ele traz?
A forma de
lidar com o acidente depende da capacidade de cada agente do sistema em
preservar a maleabilidade própria à forma do sistema, em cuidar dos laços que o
constituem, em não se esquecer do laço que permite ter um pé no tempo do aeion,
a dimensão da potência, e um outro no cronos, a dimensão da História. A decisão
de acolher ou não o acidente responde às forças justas presentes no sistema que
desenha o plano comum e não a apegos pessoais. A decisão não
se deve dar por apego, por defesa de uma verdade qualquer, mas por uma franqueza
em relação à situação. No apego instala-se uma terra segura que recusa qualquer
exterioridade. O apego é apego às consequências, à forma e não às forças
dinâmicas em jogo na configuração de relações do plano comum.
Se estivermos muito apegados o acidente vai ser visto como uma intrusão, uma
catástrofe. O apego a uma forma não é a resposta justa e a recusa em acolher o
acidente pode ser a morte do plano comum. Assim, o apego
difere do afecto. É importante a criação de laços de afecto que nos comprometam
mas que sejam maleáveis. Sem laços emocionais o plano não é tecido,
não tem vitalidade. Só amando suficientemente a paisagem que habitamos é que é
possivel mantê-la viva.
SINAL
A diferença
de gradação entre forma e força equivale à diferença de gradação entre acidente e sinal.
Quando o encontro é mais força do que forma, dá-se sob a forma de sinal e
não de acidente. Quando o percebemos como algo do qual podemos
fazer forma, percebemos o sinal. O acidente surge
como potencialidade (de ar fresco, super vitalidade ou de tragédia). Perceber
um sinal é ter a capacidade de antecipar a
materialização do acidente – i.e.: vê-lo sob a forma de
holograma antes de este vir a ganhar corpo no kronos. Captar um sinal é captar
uma direcção possível. Cultivar a percepção dossinais é uma das
dimensões a cultivar da “awareness”, através da qual é possível explicitar o
momento presente. O presente é feito de actual e de virtual, do que se passa e
das tendências ou sinais que apontam para o que se pode vir a
se passar e para o que se pode vir a se materializar como acidente.
Se o acidente é
antecipado pelos seus sinais, é ainda preciso estar alerta para a
hipótese destes sinaisserem “falsos”, i.e.: produto da expectativa,
do medo ou da ansiedade e não das propriedades e das possibilidades
do acontecimento em curso. Distinguir entre sinais e
falsos sinais implica perceber a diferença entre projectar uma intenção ou
distinguir uma direcção no acontecimento. Só é possível ler sinais se
calarmos intencionalidades e expectativas. Com estas só produzimos sinais
falsos, já que tanto intenções como expectativas são mais um produto de uma
consciência centrada num sujeito originado pela cisão entre agente e plano,
do que de um estado de alerta para com o acontecimento. O agir que
daí provém é um agir suportado por ansiedades, medos, inseguranças e suposições
das posições e necessidades alheias – cai-se numa benevolência salvadora que
rápidamente se transforma em controle e manipulação. O cuidar distingue-se do
salvar pelas consequências que estes dois actos têm na relação. Cuida-se para
que o acontecimento mantenha viva a sua força, para que não se transforme numa
forma estática que escravize e dite os comportamentos que aí têm lugar. O
cuidar não é da ordem do controle mas do estimar o que nos afectou.
Os sinais são
a primeira categoria de um futuro provisório. Activar um sinal é
passar da força à forma. Não se trata de formar um habito (uma repetição sem
diferença, desatenta e automática, onde se assume que o que acontece irá sempre
acontecer segundo aquela forma). A entrada em forma é uma entrada em série,
pela qual a repetição se dá pelas diferenças que nela se
reconhecem. A séria prolonga-se porque é aberta, como uma forma em mutação. É
uma forma e não uma fôrma. O campo de forças do qual a forma emana e que
percebemos inicialmente como sinal é preservado. Para
activar sinais é então necessário começar por ler as direcções escritas
no tempo cronológico, fazer a estimativa das suaves inclinações que dão a
medida das oscilações do plano em equilíbrio meta-estável.
Um sinal só é activado respeitando as direcções presentes
no plano, assim como o limite que indica a sua tendência. A partir
do momento em que emerge uma direcção comum (que é uma mancha
e não uma linha recta e unívoca; não se trata de reproduzir formas de posições
mas de um ajuste constante entre diferenças), desenha-se um campo de possíveis
e de impossíveis.
Ler sinais é
ler possibilidades. Dentro do que é desenhado como possível existe o que é
possível e provável e o que é possível e improvável. O provável é um possível
com mais força e maior relevo, sendo anunciado por sinais mais
fortes. Os sinais fortes são os que têm mais probabilidade de ganhar corpo e de
se realizar. O que é improvável apresenta-se através de sinais mais
fracos que têm mais hipóteses de se reconfigurar em acidente do
que em direcção comum. A gradação expressa pela paleta
de sinais percebidos no plano comum enuncia-nos uma agência
disseminada por todos os elementos que compõe a paisagem. Não
existem objectos inertes. Tudo tem uma tendência, uma força, um apetite. Tudo
tende a uma direcção. Por isso é insuportável tomar demasiada
atenção aossinais. Se percebemos todos os sinais a
presença torna-se impossível. Deixa de ser possível estar ali enquanto agente.
Quando se activa uma sensibilidade generalizada todos os relevos são
planificados ao mesmo nível e, deixando de existir relevo principal,
a posição desfaz-se. Porque só pela tomada aposição é
que se activam sinais, é fundamental perder a ilusão de estar a perceber
a totalidade doacontecimento. Dito isto, a sensibilidade generalizada é
importante para o estado gamekeeper, já que neste estado precisamos
de ter um acesso a uma escala do plano que ultrapassa a escala
das circunstâncias presentes.
O gamekeeper precisa
de entrar nas dimensões virtuais do plano para, antecipando
através da leitura dos sinais, fornecer as condições para que
o relevo em curso continue vivo. A sua acção responde a uma
ética das consequências (e não das causas e dos porquês), trabalhando-se tanto
na antecipação quanto na aceitação e na gestão das consequências ocorridas. O
interesse que governa esta ética é o interesse do acontecimento,
regulado colectivamente. O gamekeeper não se antecipa a
ponto de ter a pretensão da previsibilidade total em relação ao acontecimento.
Isso cancelaria toda a possibilidade da emergência, assim como protagonismo do
acontecimento, que seria então transferido então para a figura do gamekeeper enquanto
criador e governador da cinética do mundo. Fazê-lo seria manipular o acontecimento assegurando
que os desdobramentos dos eventos vão seguir um percurso que já conhecemos de
antemão e por isso podemos acentuar ou conter o que serve o nosso interesse
particular. Seria também negar a existência de outros agentes na constituição
do plano que, desta forma, deixaria de ser comum. O acontecimento transformar-se-ia
numa forma estática, sem força, que obriga à obediência e à reprodução. Também
o gamekeeper não é causa doacontecimento mas
consequência das relações. A sensibilidade generalizada que activa no estado de
alerta não procura um significado ou um sentido único mas, indo ao encontro
dos sinais, procura perceber as consequências possíveis do jogo de
relações em presença.
A activação
dos sinais percebidos só acontece num mesmo plano cronológico.
Se sentirmos que outros tempos estão presentes neste tempo é porque estamos a
ler como sinais o que se desenrola noutro ritmo, noutra marcha
e, de forma imperceptível, no terreno do virtual. Se a direcção presente
no plano comum não o permite, nem sempre o virtual pode coincidir logo com
o plano comum e tornar-se actual. Perceber então um sinal que
não pode ser actualizado equivale a assinalar a co-existência de outros planos
temporais. Esses outros planos apresentam uma exterioridade que é a zona de
potência e de virtualidade do plano do acontecimento.
No entanto, perceber esta exterioridade pelos seus sinais é já
fazer com que essa zona venha ao nosso encontro – é fazer o virtual vir ao
encontro do relevo concreto que configura o actual, o eidos ao
encontro do kronos. O actual começa então a encontrar a sua gestação no
virtual. Percebendo estes sinais vindos de outros tempos
estamos a ver quantidades infinitesimais que habitam ainda, ou
já, o nosso mundo. Émanuseando estas quantidades,
percebendo como é que agem na dinâmica das relações que geram a configuração do
contorno do plano no qual estamos a lidar com elas, que surge
a possibilidade de redesenhar e reconfigurar o plano comum,
conservando ou desligando-nos de tendências e direcçõespresentes.
STAND BY
A posição
de standby é um primeiro acto de paragem através do qual se
desactiva o impulso para a acção imediata, anulando-se simultaneamente o
protagonismo do sujeito no plano de relação. Este momento de paragem sobre a
experiência permite-nos explicitar as affordances possíveis noacontecimento em
curso. O que acontece na posição de standby não é um reforço
da cisão habitual entre o pensar e o agir. Estas, porque estamos num estado
de des-cisão, diferem somente em termos de intensidade e não por
serem procedimentos distintos. Em standby a acção passa-se
fora do quadrado e nas bordas do plano comum. Recorrendo à metáfora das
tecnologias de imagem em movimento, standby é o modo pelo qual
temos a possibilidade de perceber o valor da imagem e de testar
holográficamente o máximo de possibilidades de entrada em relação, a fim de
tornar clara e suficiente a acção a efectuar. Testando-se múltiplas affordances,
criando vários relevos, faz-se um trabalho de menorização que nos
leva à decisão clara acerca da affordance a activar. Em standby,
age-se muito para que o gameplayer possa agir somente o
suficiente, tomando uma posição clara. As posições de standby e
de gamekeeper equivalem-se no facto de ambas terem
a função de manterem o jogo activo. O trabalho feito em standby é
feito fora de campo (em laboratório: no entorno do quadrado e não dentro), na
zona escura.
Uma das
dimensões do estado de standby acontece depois de se tomar uma
posição e surge com a necessidade de um reposicionamento. O acidente interfere
no plano de relação comum o que nos leva a reparar para agir
no que se tem e com o que se tem. A posição de standby é então
conservada mesmo quando se é gameplayer. Ela permite o
desenvolvimento de um estado de vigília que nos impele a estar atento, pronto e
disponível. Estar em standby é poder estar à espera que algo
aconteça mas sem expectativas, de forma a desenvolver um estado de prontidão
que, atento àsquantidades do entorno, possa suportar, aguentar,
cuidar, zelar e tomar a responsabilidade peloacontecimento. Os papéis de
espectador e de actor são desactivados. Não há nem observação passiva nem acção
extrema. Assistir é estar pronto para oferecer o que é preciso para conservar a
vida do acontecimento – e esta oferta pode exprimir-se em
introduzir ou em retirar algo. O tipo de suporte oferecido é
circunstancialmente definido. Tanto a realização, como a agência dependem das
circunstâncias do acontecimento.
GAMEKEEPER
A noção
de gamekeeping tem a sua origem no pensamento sobre formas de
governo e de organização estatal. Dentro deste contexto, a prática de gamekeeping (noção
que, traduzida literalmente para português, equivaleria à função do responsável
pela preservação de uma reserva florestal), tornada possível pelo Estado
pós-moderno e neoliberal, define-se por contraste com a prática da jardinagem,
associada ao Estado moderno. A jardinagem é a figura do Estado moderno que
exerce um controlo rígido e manipulador sobre o que pode ou não crescer num
território. As ervas daninhas, sem valor, são definidas por oposição
às boas plantas, com valor. Da mesma forma, no âmbito das relações sociais, ou
se acatam papéis dignos, desenhados por um sistema institucional disciplinar –
a escola, o exercito, etc -, ou se é remetido para uma zona de exclusão
comportamental. Desta gestão do plano comum baseada em preconceitos de valor
emergem então formas de estigmatização e de exclusão, que originam
simultâneamente o aparecimento de um contrapoder pelo qual as vítimas criam
comunidades e circuitos de relação subterrâneas. No Estado moderno o controle
limitava-se aos espaços fechados criados pela institucionalização das relações
consideradas legítimas, nos intervalos das quais era possível criar espaços
alternativos e planos comuns.
O que faz a
passagem de um Estado moderno a um Estado-gamekeeping, pós-moderno ou
neoliberal, é um alastrar do controle que promove a fluidez de todas as
fronteiras – entre o público e o privado, entre países, etc. – e um
rastreamento generalizado do plano de acção e de comportamento comum. O
Estado-gamekeeper apropria-se então das anteriores zonas de resistência e de
abertura. O controlo é diluído e infiltra-se para além das instituições
normativas que no Estado moderno se excluíam umas às outras. Este tipo de
controle estatal apodera-se das dinâmicas que surgiram nas brechas anteriores e
que permitiram a emergência de planos comuns (ex: o modo como
a contra-cultura dos anos 60 foi apropriada pela cultura dominante),
expropriando a forma das dinâmicas relacionais pelas quais esta emerge. Num
Estado-gamekeeper e neoliberal de governo, como é o caso das sociedades de
controlo, não existe este controlo central. Acaba-se o Estado social mínimo e
as instituições disciplinares totalitárias. Simultaneamente dá-se uma
desresponsabilização do Estado em relação aos cidadãos que são instigados ao
comportamento do “cada-um-por-si” e do “faça-você-mesmo”, atribuindo-se uma
hiper-responsabilização do indivíduo, o qual deve estar em processo de formação
e actualização permanente (por contraste com o sistema moderno no qual a
formação é obrigatória mas finita, dando acesso a um conjunto de ferramentas
que garantiram o sucesso de acções futuras). Neste processo de individualização
radical toda a responsabilidade da liberdade é transferida para o individuo,
gestor de si próprio. Estabilizar num lugar é então entendido como estagnar.
Sem amparo, o fracasso ou o sucesso da trajectória que o individuo faz sozinho
é da sua responsabilidade. Para tal pode contar com muitas bússolas e modelos
de orientação (o personal trainer, várias cartilhas normativas que se
contradizem, etc.), mas nenhum destes modelos tem a capacidade de fazer
comunidade. O plano geral assume-se como um plano de fluxo livre mas que não
serve de matéria a qualquer relação já que neste é reforçada a cisão entre a
escala comum e a micro-escala dos indivíduos. A separação moderna entre o
individuo e o social é então agravada no Estado-gamekeeper, ficando a possibilidade
de integração limitada ao grau de sucesso económico atingido.
Perverso
quando acompanhado por um comportamento de desresponsabilização do individuo em
relação à gestão do espaço social e de desamparo social, o Estado-gamekeeper
permite uma maior mobilidade e circulação de fluxos de ação. É aqui que surge a
figura do gamekeeper como brecha, abertura, para um outro tipo
de acção fundada sobre a des-cisão e passível de fazer emergir
umplano de relação. Ou seja, é preciso aceitar esse controle
alastrado e, desta forma, não deixar somente nas mãos do Estado a operação das
possibilidades de realização que assim são abertas. É no accionar dessas
possibilidades pelos agentes do plano comum que pode haver
outro mundo possível.
No Estado
moderno as brechas de possibilidade de acção e de criação de planos comuns.
que não obedecessem ao modelo de socialização imposto pelas instituições
disciplinares, residiam no habitar dos intervalos entre essas mesmas
instituições. Agora, as brechas de possibilidade já não são territoriais: estão
lá para serem activadas e não como territórios instalados. A possibilidade da
quebra do controle que se impõe ao plano comum reside então no
que o controle precisou de abrir para se poder diluir de forma descentralizada
no terreno das relações humanas em geral. Este espaço de circulação de poder e
de controle pode também ser usado pelas pessoas que o habitam e que nele agem.
No entanto, nem todos o fazem e isto porque este processo fez-se acompanhar por
uma individualização radical e pela conservação da necessidade de procurar
modelos para desenhar o plano comum. A brecha de possibilidades só se abre
quando se recusa, simultâneamente, o modelo e o mandamento do
“faça-se a si mesmo” e se resiste à noção de individuo –
desfragmentando-se a si próprio, reconhecendo-se como multidão e, activando o
processo de des-cisão, percebendo a sua pertença a um plano de
relações sociais.
O
individualismo instiga à competição e não à colaboração. Cada um trabalha pelas
suas próprias condições de existência. Desta forma não existe independência
embora a lógica que rege a ideologia individualista queira mostrar que existe.
Cada relação degenera em saque, que por sua vez gera como retorno a falta, a
deterioração e o fim do plano de relação. Alimentam-se as
condições de existência de ilhas anti-relacionais. Só aparecem fagulhas no
lugar de um combustível que alimente de forma constante e sustentável o plano comum.
A única
possibilidade de exercer a brecha é tomar para si a postura de gamekeeper,
aceitando as condições abertas pelo Estado pós-moderno sem aceitar o mandamento
da individualização radical. De outra forma, a brecha fecha-se e em
vez de se gerar um grande espaço aberto, gera-se um grande espaço fechado.
Tomar para si a postura de gamekeeper é poder accionar um
outro funcionamento pelo qual a recusa do individualismo radical reactiva a
responsabilização de cada agente na gestão do colectivo, desmontando a falsa
oposição entre sociedade e individuo. A gestão do espaço comum é devolvido ao
uso de cada um, num plano em que cada agente singular cuida das condições de
existência, não de si mas dos outros. As condições de existência de um agente
singular existem porque se asseguram as condições de existência dos
outros. Reciprocamente são criadas as condições de existência
para todos, ou seja, são criadas as primeiras condições para a emergência de
uma comunidade.
O gamekeeper não
impõe uma configuração ao plano comum, nem o corrige ou
conserta. Não há modelo prévio que sirva de pretexto a uma correcção. A sua
função consiste em cuidar do eventoposto em marcha, permitindo a
manutenção das condições de possibilidade de vida de um ecossistema (por
exemplo, numa horta, se chove pouco, é preciso regar). Trata-se de uma acção de
regulação das boas condições para que a vida prolifere sem que se determine “a
priori” o que vai acontecer, o que vai emergir e nascer, mantendo um estado de
atenção permanente às condições de possibilidade da existência de outros. A
gestão em causa própria não se pode esquecer de todo o ecossistema ao qual
pertencemos. Não se trata aqui de abdicação ou altruísmo cego. Trata-se de
investir numa lógica consequente percebendo que cada agente singular pertence a
todo um ecossistema que configura o comum e que o inclui. O que se passa nesse sistema
é o que o agente vai ter de viver. Trata-se de uma lógica de reciprocidade e
de co-dependência que preserva a autonomia. O sujeito não é causa, ele vive por
consequência. Não há protagonismo do eu nem desejo de hiper-visibilidade senão
volta-se ao controle. Os eventos em si têm o seu próprio
desenrolar e o seu protagonismo. Se o gamekeeper orienta o
fluxo das relações em curso, ele fá-lo pelo facto de participar nelas e não
controlando-as. A sua acção não é manipuladora mas de manuseamento.
Desta forma
o gamekeeper trabalha com as consequências, dando assistência ao plano de
relação. Ele cuida, repara, acolhe o que está a acontecer, tem
atenção aos sinais e faz uma gestão dos acidentes,
activando uma lógica consequente, de atenção filigranar à duração, ao que se
passa e a como o que se passa produz o plano de relação.
O gamekeeper não é um espectador. O seu estado de atenção
equivale ao de alguém que está de vigília, perto do acontecimento, não
descurando a sua presença de forma a poder dar suporte aos acontecimentos em
curso. Baseando-se tanto na intuição como na experiência passada, o gamekeeper vê
os sinais do futuro provisório. Para isso ele precisa de estar
noplano de relação, à volta dele e para além dele, porque é no
futuro provisório que as potencialidades vão poder ser percebidas. Ele precisa
de estar consciente das periferias dos relevos principais pois
é a partir delas que algumas soluções poderão emergir para manter o plano comum
vivo. Ogamekeeper lida então com as condições que permitem o a continuação
do acontecimento, vendo como os eventos nele
operam e se têm combustível para continuar a fazê-lo. Ele observa quem precisa
do quê e quando, mantendo sempre presente a pergunta “a situação presente
necessita de mim?”, à qual se segue uma outra: “como é que eu posso valer à
situação?”. A tarefa do gamekeeper é ética. Sem protagonismo,
a sua acção gera as quantidades que tornam possíveis a
emergência doacontecimento e não o acontecimento em
si, já que este emerge das relações e das direcções em curso no plano de
relação. A configuração do acontecimento organiza-se à medida
que este se vai dando à existência. Qualquer acto de acrescentar ou de
retirar quantidades é realizado com o objectivo de dar
passagem ao acontecimento, de preservar a sua vida e a sua força. A
sua tarefa não é pacificadora mas sim a de manter a inquietude, sublinhar
problemas e potencialidades, voltar ao ponto zero e encontrar um equilíbrio
meta-estável entre intensidades e quantidades.
A morte é a
ausência de futuro de um dado acontecimento. Quando entramos num
loop que nos indica essa ausência, precisamos de voltar a considerar as quantidades presentes
no plano de modo a perceber os futuros provisórios que estão a
emergir já que, quando temos a sensação de morte, algo de novo está a surgir –
é então que o isso pede para ser mantido vivo no plano da
relação. O factor confiança é fulcral no papel do gamekeeper:
o gameplayer confia em que outrem irá manter vivo oplano de
relação, mesmo que esse “outrem” seja ele mesmo, já que um agente pode, e
precisa, ser ao mesmo tempo gameplayer e gamekeeper.
Se bem que a sua distinção operacional se deva manter clara, estes papéis são
entendidos como áreas de intervenção que podem ser accionadas por um mesmo
agente.
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